quarta-feira, 30 de junho de 2010

O materialismo deve comandar as escolhas da ciência?*

A perspectiva materialista tem impedido a ciência de apreciar as concepções espiritualistas e espíritas do Universo. Mas a história demonstra que nem sempre as visões predominantes num determinado momento histórico acabam prevalecendo com o passar do tempo

Por Rita Foelker

Paul Feyerabend (1924-1994) é considerado um autor controverso em filosofia da ciência. Suas posições iconoclastas e sua afirmação de que o conhecimento científico não está em posição superior relativamente aos outros modos de conhecimento, como o mítico ou literário, levaram alguns leitores a entender que seu propósito era o de diminuir o valor da ciência.
O que ele fez, contudo, foi destruir a aura de superioridade que muitos querem atribuir ao conhecimento científico, e observá-lo simplesmente como fruto de uma atividade humana impregnada das características que nos fazem, ora passionais, ora dogmáticos, ora entusiastas de uma visão de mundo, ora incrédulos. E, a partir disso, Feyerabend propõe levar em conta que nossas características psicossociais influenciam o modo de fazer ciência, interferindo na eleição teorias e modelos com os quais o cientista trabalha.

O passado deve condicionar o futuro?

Uma das idéias deste autor sobre a prática científica – como vem sendo realizada “oficialmente” – é a de que ela está contaminada por maus hábitos que privilegiam a teoria existente. Costuma-se usar a teoria aceita no presente para avaliar novas concepções científicas. Exige-se o atendimento a uma “condição de coerência”, que diz que hipóteses novas devem ajustar-se às teses atualmente bem assentadas.
Pode-se exemplificar isto com a crença no modelo materialista, predominante nos meios científicos, a qual faz pensar que tudo o que não se baseie em pressupostos materialistas seja não-científico, desprovido de sentido ou indigno de atrair atenção dos cientistas.
Mas a “condição de coerência” historicamente nem sempre foi levada em conta.
Pierre Duhem (1861-1916), físico, matemático e filósofo da ciência, recorda em seu artigo Algumas Reflexões sobre as Teorias Físicas o fato da teoria de Newton ser incongruente com as leis de Kepler e também com a lei da queda dos corpos de Galileu. Enquanto, segundo Kepler, os planetas não exercem influência gravitacional sobre o sol, Newton enuncia que todo planeta exerce sobre o sol uma ação igual e diretamente oposta àquela que recebe. E Newton vai além. Ele ainda acrescenta que, se o sol fosse substituído por outro corpo, as ações exercidas sobre os diversos planetas seriam calculadas tendo por base a relação entre a massa desse novo corpo e a massa do novo sol!
Outras discrepâncias científicas podem ser encontradas entre Newton e Galileu. O primeiro diz que a aceleração de um corpo que cai diminui conforme nos afastamos do centro da Terra, enquanto, para o segundo, a aceleração dos corpos em queda livre é constante (não diminui e nem aumenta).
Onde estes raciocínios nos encaminham? À conclusão de que a anterioridade no tempo não deve contar em favor de uma tese, pois a condição de coerência contribui para a preservação apenas do que é antigo e não necessariamente do que está mais fundamentado. Um cientista que trabalhasse com o modelo kepleriano tenderia a considerar absurdo e rejeitar o princípio da gravitação universal enunciado por Newton. Hoje, porém, a lei de Newton é que é aceita e ensinada nas escolas.

O significado da cientificidade em cheque

O que não é considerado científico num momento pode vir a sê-lo posteriormente, bem como certas noções tidas como científicas podem cair por terra. Como o cientista pode conviver com este fato e até tirar proveito dele? Feyerabend propõe que ele compare teorias umas com as outras, em vez de comparar teorias e fatos. Afinal,os fatos podem dar apoio à sua teoria e a outra teoria incongruente com a sua, porque isso dependerá de sua interpretação do que observa. Mas admitindo examinar uma teoria alternativa, o cientista pode experimentar um modo diferente de ver os mesmos fatos e, assim, avaliar qual é mais satisfatório.
Porém, de onde viriam as visões alternativas? Muitas vezes, do passado, como no caso da teoria atomista dos gregos Demócrito (460-370 a.C.) e Leucipo (~490-420 a.C.) recuperada por John Dalton (1766-1844), que propôs o primeiro modelo atômico da idade contemporânea.
Assim como o atomismo, outras doutrinas antigas podem parecer bizarras e sem sentido porque seu conteúdo, ou não é conhecido, ou é alterado, ou é olhado pela lente do preconceito. Mas podem conter elementos que interessam ao desenvolvimento científico da atualidade.
Como exemplo, Feyerabend analisa o caso de duas teorias concorrentes no campo da medicina: a ocidental e a tradicional chinesa, na China comunista. Em Contra o Método, o autor fala de como uma ciência importada do Ocidente afastou o interesse naquele país pelos métodos tradicionais de diagnóstico e tratamento como a acupuntura, a medicina de ervas, a moxabustão, bem como por toda a doutrina que as justificava. Os médicos que operavam estes métodos teriam de ser treinados para atuar segundo o novo modelo ou, então, ser impedidos de exercer a profissão. Essa atitude perdurou até por volta de 1954, quando uma campanha de inspiração política surgiu, em prol do retorno à medicina tradicional. Isso abriu espaço para uma dualidade de concepções e a convivência entre as duas práticas médicas.
Muitas vezes, certas partes da ciência se tornam rígidas e intolerantes, sem que isso invalide os pressupostos e métodos da teoria rejeitada. Neste caso específico, algumas conclusões surpreendentes atestaram que havia “efeitos e meios de diagnóstico que a medicina moderna é incapaz de repetir e para os quais não dispõe de explicação. (...) [Na medicina de ervas,] como em outros casos, o conhecimento é obtido antes por uma multiplicidade de concepções do que pela aplicação determinada de uma ideologia preferida. E percebemos que a proliferação talvez tenha de ser efetuada por entidades não-científicas cujo poder seja suficiente para superar as mais poderosas instituições científicas”.
Diante disso, vê-se que nenhuma teoria mais moderna e avançada é invulnerável. Por isso, não podemos focalizar os problemas do conhecimento esquecendo-nos da história e das circunstâncias em que um dado conhecimento foi aceito e, outro, rejeitado.

Ciência como processo inacabado

Considera-se que as observações precisas, os princí
pios claros e teorias corroboradas já são suficientes para decidir sobre a aceitação ou rejeição de uma hipótese recém-sugerida. No entanto, observações, princípios e teorias não são entidades atemporais, embora seja comum pressupor que sejam.
A ciência é um processo histórico heterogêneo e complexo. Aquilo que parece fundamentado hoje pode carecer de evidências comprobatórias, amanhã. Recordamos que a hipótese geocêntrica – de que a Terra é o centro do Universo – e a teoria aristotélica da percepção se apoiavam mutuamente. O sistema de Aristóteles é coerente e racional. Porém, ambos foram substituídos por sistemas mais satisfatórios, do ponto de vista do seu poder explicativo e preditivo.
Por outro lado, é improvável que a teoria de Copérnico surgisse ao mesmo tempo que todas as outras teorias de que ela necessita para se apoiar. Mas só após o surgimento destas outras teorias, o heliocentrismo passa a fazer sentido.
Os cosmologistas adeptos do geocentrismo não sabiam que a doutrina de Copérnico poderia dar nascimento a um sistema científico aceitável do ponto de vista do método científico. Pelo contrário, muitos deles resistiram às novas idéias.
Também os cientistas materialistas de hoje, não suspeitam que a teoria espírita possa originar um modelo científico não só aceitável, como frutífero. Mas aqueles que acreditam podem trabalhar para que isto aconteça.

Quem foi Paul Feyerabend

Filósofo da ciência austríaco que morou em diversos países como Reino Unido, Estados Unidos, Nova Zelândia, Itália e Suíça. Seus mais importantes são Contra o Método (publicado no Brasil pela Editora UNESP), Adeus à Razão (coletânea de artigos com tradução portuguesa pelas Edições 70) e Philosophical Papers (ainda não traduzidos). Feyerabend tornou-se famoso pela sua visão anarquista da ciência e por seu ataque à noção da existência de regras metodológicas universais.


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* Este texto foi originalmente publicado na Edição 59 da Revista Universo Espírita.

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