domingo, 4 de julho de 2010

Afinal, pode-se falar numa ciência espírita?*

Muito do que se diz do Espiritismo é preconceito e o preconceito nada tem de científico. É preciso conhecer para poder julgar

Por Rita Foelker

A fenomenologia mediúnica e anímica atraiu e continua a atrair a atenção de muitos cientistas. No século passado, William Crookes, químico e físico inglês, foi um pesquisador de fenômenos espíritas. Camille Flammarion, astrônomo e escritor francês, frequentava a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e pronunciou o discurso por ocasião dos funerais de Allan Kardec. Charles Richet, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1913, nunca se declarou espírita, mas estudava os mesmos fenômenos dentro de uma ciência que ele chamou de Metapsíquica.
É inegável o potencial dos fatos espíritas para gerar curiosidade científica e pesquisa séria, mas a aceitação da ciência espírita como ciência de fato, com o mesmo status epistemológico da ciência reconhecida nos meios acadêmicos, ainda é restrita a um pequeno número de estudiosos e pesquisadores.
Algumas objeções surgem do desconhecimento das particularidades desta ciência, de seus resultados práticos e seu extenso lastro teórico e experimental.
O Espiritismo é considerado por muitos uma doutrina dogmática e, por isso, a ciência espírita é vista como uma mera tentativa de comprovação de seus dogmas. Este é um engano nascido da limitada compreensão da origem, objeto e objetivo da ciência espírita.
Outros alegam que seus relatos são sempre subjetivos e, portanto o cientista espírita seria incapaz de prover suas afirmações de uma confirmação independente, objetiva.
Há ainda os que invocam a “navalha de Ockham”** e dizem que, ao “inventar” Espíritos para explicar certos fatos, os espíritas estão proliferando entidades desnecessariamente.
Tentaremos esclarecer, em primeiro lugar, por que se pode dizer que existe uma ciência espírita e, em segundo lugar, por que essas críticas carecem de fundamento e revelam idéias preconcebidas sobre o Espiritismo.

O ponto de partida

O objeto da ciência espírita foi definido por Allan Kardec. Ela estuda os Espíritos, sua natureza, origem, destino e suas relações com o mundo material. E seu objetivo é o conhecimento das leis que atuam nestas relações.
Ao contrário do que se imagina comumente, Allan Kardec não foi um líder religioso. Quando iniciou suas pesquisas sobre fatos mediúnicos, Kardec era um professor altamente conceituado na França e também um cético quanto à veracidade dos fenômenos que agitavam a sociedade europeia. Sua história como codificador da Doutrina Espírita começou quando aceitou o convite de um amigo e passou a frequentar reuniões onde ocorriam manifestações físicas de Espíritos, que ficaram conhecidas como fenômenos das mesas girantes***. Após muito tempo de observação e havendo estudado inúmeros desses fatos, foi a partir de evidências factuais que ele, com a cooperação dos Espíritos Superiores, trabalhou pela construção e elucidação da teoria espírita.
Allan Kardec não tinha a personalidade de um místico ou religioso, de uma pessoa crédula que aceita explicações de causas sem exame mais profundo ou que cria teorias mirabolantes sobre coisas que não entende em profundidade. Seu caminho passou pela investigação, comparação, reflexão filosófica e atitude científica. Submetia as informações obtidas mediunicamente ao controle universal dos ensinos dos Espíritos – conforme se lê na introdução a O Evangelho Segundo o Espiritismo – confrontando comunicações sobre o mesmo assunto, recebidas por diferentes médiuns de diferentes lugares, antes de atribuir-lhes confiabilidade. Kardec foi movido pelo firme propósito de aprender e compreender a realidade que se descortinava diante de seu olhar atento e sem preconceitos.
Em A Gênese, fica claro que a revelação espírita tem duplo caráter, espiritual e humano, por ser fruto da atividade e empenho conjunto de encarnados e de desencarnados.

O status de ciência

Saber o que faz de uma disciplina qualquer uma ciência não é tão simples quanto possa parecer. Este é um debate antigo entre filósofos da ciência.
A concepção mais comum de ciência é a de um conjunto de teorias solidamente comprovadas por observações e experiências científicas, cuja autoridade seria inquestionável. Tal concepção tem sofrido repetidos golpes. Já nos anos 1930 do século passado, Karl Popper derrubava a tese positivista de que as observações servem para comprovar teorias irrevogavelmente. Estudos mais recentes de história da ciência, empreendidos notadamente por filósofos como Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, dão-nos conta de que a autoridade de uma ciência não é absoluta, nem pode pretender-se definitiva.
Ganha espaço em nossos dias a noção de ciência como uma atividade humana que se caracteriza por uma determinada prática, um espaço onde diferentes teorias sobre um mesmo conjunto de fenômenos concorrem para ver qual delas se afirma e se desenvolve, e qual definha e desaparece. E há uma forma científica de se praticar o Espiritismo, onde muitos pesquisadores do passado e do presente agem com objetivos e métodos científicos.
Mas é aqui que surgem algumas distinções importantes. Ao falar de método, não estamos falando do método convencionalmente chamado de científico.
Prosseguindo em seus estudos, Kardec não tardou a perceber que estava lidando com “um mundo de coisas novas”, e que estas coisas mereciam atenção filosófica e pesquisa científica. A nova ordem de fenômenos com que se deparou não se submetia aos métodos consagrados de pesquisa, como ainda hoje não podem ser reproduzidos em laboratório, como se faria com uma cultura de bactérias ou uma combinação de substâncias químicas. A natureza dos Espíritos e a sutileza dos fluidos****, afetados pela condição emocional e moral dos envolvidos nas experiências, exigem outro método, outro tipo de controle e avaliação de resultados. Todavia, embora haja elementos subjetivos presentes nos fenômenos, pertencentes à subjetividade do Espírito comunicante, do médium e dos presentes, a fenomenologia espírita está repleta de dados que podem ser objetivamente percebidos, analisados e utilizados como evidências de sua veracidade.
Por isso, podemos dizer que o Espiritismo é uma ciência experimental com uma metodologia científica própria, além de estar consistentemente teorizado. Ele apenas não é admitido como “científico” pela ciência oficial – o que, provavelmente, não representa uma desvantagem para ele.
O fenômeno espiritual existe. Foi comprovado de inúmeras maneiras, que aparecem em uma vasta bibliografia para aqueles que desejem se informar. E ao estudá-lo a ciência espírita desvenda aspectos importantíssimos da realidade além do que nos é visível e tangível.
Resta agora analisar as objeções citadas no início deste texto.


O Espiritismo é dogmático?

A ciência espírita é considerada por alguns como uma pseudociência criada para dar apoio às idéias propagadas pela Filosofia e Religião Espíritas. Tal pensamento não resiste a uma confrontação com a própria natureza evolutiva da doutrina.
O Espiritismo não é dogmático, mas, sim, evolucionista. Ou seja, ele se propõe a evoluir com a ciência e a corrigir-se, caso a ciência mostre que ele está errado. Tal flexibilidade não representa um afrouxamento nos seus critérios de verdade, mas uma necessária adaptação nascida da lúcida compreensão de Kardec sobre os efeitos do progresso científico.
Acresce ainda que o progresso do Espiritismo deve-se, em grande parte, aos seus recursos metodológicos próprios, e não apenas à incorporação de elementos de outras ciências.

A ciência espírita carece de confirmação independente?

Quem diz que a experiência dos fatos espíritas é subjetiva e não tem possibilidade de comprovação objetiva, não conhece o Espiritismo sério.
Os Espíritos se encontram por toda parte, porque não sofrem as limitações do mundo material. Podem ser objetivamente percebidos e, embora invisíveis, podem dar sinais concretos de sua existência. Podem também tornar-se visíveis e palpáveis em certas condições. William Crookes, citado acima, pesquisou um caso destes, as materializações do espírito Katie King. (Na imagem, o Dr. J. M. Gully mede a pulsação do Espírito materializado Katie King. )
Contudo, Kardec já nos alertava em O Livro dos Médiuns, no capítulo Do Método: para aquele que não conhece a teoria, os fatos pouco têm a dizer. Uma ideia equivocada de muitos espíritas é a de que se uma pessoa incrédula presenciar uma manifestação mediúnica, ela acreditará na existência e comunicabilidade dos Espíritos. Contudo, o codificador observa que, no Espiritismo, a questão dos Espíritos é secundária, pois o ponto de partida é a compreensão dos princípios e leis que estão por trás das manifestações. E se alguém não estiver pronto para compreender estas leis e princípios, provavelmente não será persuadido pelo fenômeno.

A ciência espírita inventou os Espíritos para explicar fatos que teriam outras explicações mais simples?

Há quem diga que o Espiritismo criou os Espíritos e agora precisa-dar-lhes um papel no mundo. Para tanto, ele necessita atribuir certos fenômenos aos Espíritos e isto seria multiplicar entidades desnecessariamente. Afinal, muitas coisas têm explicações materiais e concretas e não precisamos dos seres invisíveis para entendê-las.
Contudo, ao conhecer a Doutrina um pouco mais profundamente, o interessado descobrirá que a ciência espírita não recorre aos Espíritos para explicar o que pode ser explicado por causas materiais, e isto por recomendação do próprio Allan Kardec.
Quando nos referimos ao seu domínio de aplicação como, por exemplo, os fenômenos mediúnicos e anímicos, a reencarnação, os fluidos, nesses casos as explicações espíritas costumam ser mais apropriadas do que aquelas que os materialistas e céticos costumam oferecer para fugir das teses espíritas.


Para pensar

A ciência que nega a existência dos Espíritos e do mundo espiritual não é estática e suas afirmações não são infalíveis. No entanto, muitos assim crêem. Porém, dizer que os Espíritos não existem porque os cientistas não os detectaram com seus aparelhos é a mesma coisa que dizer que as luas de Júpiter***** não existiam até serem vistas. (No caso, os cientistas estariam na mesma posição dos bispos de mentalidade medieval, negando o que não acreditam que possa existir...)
Notemos que aqueles que negam a existência dos Espíritos e dos fatos espíritas costumam fazê-lo de duas maneiras: simplesmente negando a realidade dos Espíritos e dos fenômenos ou, então, desqualificando aqueles que sustentam a realidade dos Espíritos e dos fenômenos como ingênuos, ou charlatães, ou loucos.
Dizer que alguém acredita em Espíritos porque é louco é uma afirmativa que carece de justificação. Justificar dizendo que, pelo simples fato de acreditar em Espíritos, alguém é louco, constitui um argumento circular que causa arrepios à lógica mais elementar.
Kardec já dizia sabiamente que “negar não é provar”. A profusão de casos que surgem todos os dias acabará por tornar a negação uma atitude ingênua. Quanto à integridade e sanidade dos pesquisadores e estudiosos, parece-me que é preciso muito, mas muito cuidado mesmo ao questioná-la. Porque embora a sanidade e integridade possam estar ausentes, em casos excepcionais, a maioria dos estudiosos é séria e consciente, está gozando de boa saúde mental e obtém resultados animadores em suas pesquisas.

A imagem atual da ciência******

Por Silvio Seno Chibeni

A imagem de ciência a que os filósofos da ciência chegaram a partir das conquistas recentes indica que uma ciência autêntica consiste, simplificadamente, de um núcleo teórico principal, formado por hipóteses fundamentais. Esse núcleo é circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras, nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento futuro. De um lado, há as regras "negativas", que estipulam que nesse desenvolvimento os princípios básicos do núcleo teórico devem, o quanto possível, ser mantidas inalteradas. Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria e as observações experimentais devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares; regras "positivas" sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções e complementações devem ser efetuadas.
Ao contrário do que se supõe na visão comum de ciência, não há restrições sobre a natureza das leis de uma teoria científica, que podem inclusive ser de caráter predominantemente metafísico. A restrição fundamental é que a estrutura teórica como um todo forneça previsões empíricas corretas, ou seja, dê conta dos fatos. O exame das teorias científicas maduras e dos padrões avaliativos adotados pelos cientistas indica ainda que algumas características devem necessariamente estar presentes em qualquer boa teoria científica. Inicialmente, ela deve ser consistente. Deve ser abrangente, explicando um grande número de fatos. Deve, por fim, apresentar as virtudes estéticas de unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão reduzido quanto possível. Há ainda o vínculo externo de que uma teoria não deve conflitar com as demais teorias científicas bem estabelecidas que tratam de domínios de fenômenos complementares (por exemplo, uma teoria biológica não deve pressupor leis químicas e físicas que contrariem as leis bem assentadas da Química e da Física).
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*Este artigo foi publicado originalmente na edição 45 da Revista Universo Espírita e revisado para esta postagem.

** A Navalha de Ockham é um princípio metodológico também conhecido como “princípio da economia”. Atribuído a um pensador inglês do século XIV, William de Ockham, é enunciado da seguinte maneira: “Desde que bastam as causas existentes na parte intelectiva, em vão se admitem outras causas.”

*** Mesas girantes é uma denominaçãoi aos fenômenos de efeitos físicos muito comuns em Paris e outras cidades da Europa, na segunda metade do século XIX.

**** Nos diálogos com os Espíritos, Allan Kardec fazia perguntas baseado nas ciências de sua época. Na Física, a teoria aceita para explicar o calor nos séculos XVIII e XIX, era a do fluido calórico. Tratava-se de uma suposta substância transmitida pelos corpos quentes aos mais frios. A noção de fluido predominava também na compreensão de outros fatos: a eletricidade era a transmissão de fluido elétrico, o imã emitia o fluido magnético e assim por diante. Os Espíritos então utilizaram o termo para explicar qual era o agente dos fenômenos mediúnicos e anímicos.

***** Referência a um episódio da biografia de Galileu Galilei (1564-1642).

****** Trecho de Ciência Espírita, artigo de Silvio Seno Chibeni, publicado na Revista Internacional de Espiritismo (RIE) - Março/1991

Agradecimento
Agradecimento especial ao Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni, que leu este texto em primeira mão e ajudou a torná-lo muito melhor.

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