sábado, 3 de julho de 2010

Ciência ou pseudociência? Sobre conhecimento e sua justificação independente

Kardec afirmou que o Espiritismo constitui uma disciplina científica, e tratou de ciência espírita em vários trechos de sua obra madura e consistente. O que, porém, torna o Espiritismo uma ciência e o distancia da possibilidade de ser visto como pseudociência?

Texto inédito
Por Rita Foelker

Um dos principais pensadores e autores da filosofia da ciência no século XX, Imre Lakatos, inicia seu artigo Ciência e Pseudociência* com a seguinte afirmação: "O respeito do homem pelo conhecimento é uma das suas características mais peculiares. Conhecimento em latim é scientia, e a ciência se tornou o nome do tipo mais respeitável de conhecimento. " E ele, então, pergunta: "Mas o que distingue conhecimento de superstição, ideologia ou pseudociência?"
Aspectos psicológicos e culturais podem levar a aceitar como razoáveis afirmações e critérios que acabam demonstrando não ter qualquer fundamento nos fatos. Lakatos, porém, cita o exemplo da feitiçaria, no século XVII, como um exemplo de raciocínio experimental - baseado nos fatos -que foi bem sucedido por certo tempo...
Kardec afirmou que o Espiritismo constitui uma disciplina científica, e tratou de ciência espírita em vários trechos de sua obra madura e consistente. O que, porém, torna o Espiritismo uma ciência e o distancia da possibilidade de ser visto como pseudociência?
O problema da demarcação entre 'ciência' e 'não-ciência' tem uma longa história entre os pensadores do conhecimento. Lakatos apresenta as várias respostas oferecidas a esta pergunta, faz uma apreciação crítica de cada uma, e então trata de sua tese sobre os programas de pesquisa, formados por um núcleo rígido de hipóteses fundamentais, em torno das quais um cinturão de hipóteses auxiliares orientam a atividade do cientista. Se a pesquisa caminha no sentido da predição de fatos novos e de descobertas que fortalecem a base empírica das hipóteses fundamentais, o programa é considerado progressivo. Mas se teorias precisam ser "fabricadas apenas com a finalidade de acomodar fatos conhecidos"**, o programa é considerado degenerativo. (Leia mais sobre os programas de pesquisa e as ideias de Lakatos em O que é Ciência?, por Silvio Seno Chibeni.)
Há alguns pontos, algumas características do conhecimento ciêntífico identificadas durante todo esse tempo de reflexão e discussão por parte de muitos autores, que podem ajudar a esclarecer que, em certos casos, estamos mesmo tratando de uma ciência digna deste nome.
A justificação independente do conhecimento é uma dessas características. Uma tese científica se caracteriza pelo seu poder explicativo e preditivo, ou seja, ela deve ser capaz de explicar fatos ocorridos, mas também de prever ocorrências futuras. Ela deve poder submeter-se a testes, confrontar-se com os fatos. Os testes irão aumentar seu grau de confirmação ou apontar sua falsidade. Assim se constrói a objetividade e independência de um conhecimento: o seu valor cognitivo.
Valor cognitivo, lembra Lakatos no mesmo artigo, nada tem a ver com "crença, compromisso e entendimento", que são "estados da mente" e não garantem nenhum grau de aceitabilidade científica. O fato de se crer que a Bíblia é uma narração literal de acontecimentos não torna o criacionismo uma teoria científica.
O fato de se crer na existência de Espíritos não faz do Espiritismo uma ciência. O que faz dele uma ciência é sua base experimental, o caráter progressivo de suas pesquisas, ou seja a sua justificação, a qual se mostra independente de aspectos psicológicos e culturais. E isto também é o que o torna um conhecimento com alto grau de respeitabilidade.

Quem foi Imre Lakatos

Nascido na Hungria, Imre Lakatos (1922-1974) era graduado em matemática, física e filosofia. Em 1956, durante um período de turbulência na Hungria, Lakatos viajou para Viena e, posteriormente, na Inglaterra, recebeu o doutorado em filosofia pela Universidade de Cambridge, em 1961. Durante longo período, manteve correspondência com Paul Feyerabend, e suas discussões deram origem a uma das principais obras de Feyerabend, Contra o Método. Lakatos escreveu: História da Ciência e suas Reconstruções Racionais, Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica, A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e Refutações.
_____
* LAKATOS, i. Science and Pseudoscience. CURD, M.; COVER, J. A. Philosophy of Science: the Central Issues. NY/London: Norton & Co., 1998.

** Id., p.25.


Nenhum comentário:

Postar um comentário