terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A teia da mente

Por Aymará (Esp.)/ Rita Foelker

A mente é uma aranha tentando construir uma teia e sobreviver.
Não importa de que tamanho ela seja, seu poder é amplo.
Faminta ao caçar, a pequena aranha nem sempre distingue entre o que é realidade e o que é ilusão. Sua ânsia é capturar e envolver na sua rede, nos seus fios fortes, a presa, para depois cortar em pequenos pedaços, deglutir e digerir aos poucos, segundo sua capacidade. E esta ânsia é tudo o que ela conhece.
A mente às vezes cresce e engorda muito com as suas ilusões, tornando-se pesada e pouco ágil, o que a faz apegada à sua posição e ao seu conteúdo. E é aí que ela deixa de fazer armadilhas apenas para as ilusões e realidades e constrói uma prisão para o seu senhor.
Os prisioneiros da mente aí estão por toda parte. Descubra o mais cedo possível se não está entre eles.
A aranha é boa, ela é a tecelã do saber. Mas torne-a sua amiga e, nunca, sua inimiga.

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Imagem: Doris Teixeira (tecendosonhoscomvoce.blogspot.com)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Limites da racionalidade ocidental

Uma das características do pensamento ocidental, desde a Grécia dos primeiros filósofos, tem sido colocar o seu estilo de raciocinar num pedestal. Christian Jambet (2006), chega a dizer que, ao cunhar o termo 'Oriente", o Ocidente, definiu os limites geopolíticos da sua própria racionalidade.
Esta racionalidade escolheu a ciência como caminho privilegiado rumo ao conhecimento a partir da Idade Moderna e, em geral, desprezou os outros, chamando-os de atalhos e não os incluindo em seus mapas de percursos aceitáveis.
Claro que houve um preço alto a ser pago por esta escolha, que fortaleceu o materialismo científico e filosófico. E dois dos componentes da formação desse preço foram apontados por dois outros autores contemporâneos.
Mircea Eliade (2008) aponta a perda do sentido mais profundo da realidade. B. Allan Wallace (2000), a difícil e confusa abordagem da consciência e da subjetividade pelos cientistas e religiosos, enquanto muitos filósofos admitem saber pouco ou nada sobre ela. Religiosos se apoiam em suas crenças. Cientistas, em sua descrença (?).
Esta reflexão nos ocorreu em função da psicografia postada anteriormente, intitulada "O sagrado e o profano", por Aymará (Esp.).

A "secularização" do Cosmos

O estudo de Eliade (2008) é principalmente histórico e antropológico. Ele trata essencialmente de como o ser humano desde tempos primevos tem tentado encontrar seu lugar no Mundo, reconhecendo um poder que se manifesta como realidade "sobrenatural", por trás da Natureza, mas que está relacionado aos fenômenos naturais e aos ciclos como nascimento-vida-morte, dia-noite, às estações do ano...
O mundo visível se apresenta como uma "cifra" onde, além de ser uma realidade e uma criação divina com um propósito, a Natureza constitui-se também numa mensagem ao homem, a ser desvendada e compreendida.
Árvores e cursos d'água incorporam arquétipos que se revelam àqueles que os contemplam. Esse ato de decifrar oferece ao homem orientação, isto é, conhecimento de para onde ir e como agir. Nas cosmogonias primitivas, as quatro direções cardeais assumem um papel fundamental, que orienta a construção de casas, templos e diz para onde devemos nos voltar ao formular nossas preces e realizar nossos rituais.
Não nos compete fazer aqui um resumo do livro, mas o fato é que essa maneira de ser no mundo provavelmente é uma das expressões daquilo que, na Filosofia Espírita, denominamos Lei de Adoração.
Eliade (2008, p.94) observa que as elites intelectuais "se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional", o que torna certos comportamentos inúteis, sem sentido. Não falaremos aqui dos muitos casos em que a religião tradicional se perde de sua proposta originária, virando uma burocracia esvaziada, repleta de ritos e normas sem verdadeira conexão com as realidades invisíveis que pregam.
No exemplo que Eliade oferece, da China, o autor observa que "a dessacralização da Natureza é obra de uma minoria, principalmente de letrados", e que "esse processo nunca foi totalmente levado a cabo" (2008, p.126-127), pois "a 'contemplação estética' da Natureza conserva ainda, mesmo para os letrados mais sofisticados, um prestígio religioso" (id., p.127). Eliade conclui que a "secularização definitiva da Natureza" só foi alcançada por um limitado número de modernos.
Talvez possamos afirmar que o próprio esvaziamento do sentido mais profundo das religiões tradicionais seja parcialmente responsável pelo afastamento desses "letrados", mas que a necessidade de ligação com o sentido mais elevado da existência não nos abandona.

O tabu da subjetividade

O segundo componente do que chamamos de "preço pago pelo pensamento ocidental" nos vem da obra de B. Allan Wallace (2000), O tabu da subjetividade. O fato é que mesmo toda a tecnologia existente nos dias atuais nada pode afirmar sobre a presença ou ausência de qualquer tipo de consciência, visto que os cientistas "nem sabem exatamente o que deve ser medido" (2000, p.3). Falta um esquema teórico dentro do qual conduzir as pesquisas nessa direção, pois a ciência sempre tem olhado para fora, para o concreto e palpável o que, segundo Wallace, "eclipsou conhecimentos anteriores da natureza interna da consciência (2000, p.4). Então, a consciência virou simplesmente um tabu perante a ciência materialista, que tenta evitá-la perseverantemente.
Segundo o autor, desenvolvemos uma radicalização em favor da valorização do conhecimento científico, a qual ele chama de cientismo. Ele aponta algumas características atribuídas à ciência, nesta visão.
A primeira delas a apresenta como uma disciplina de observação rigorosa e experimentação, seguida de uma análise racional (frequentemente quantitativa) dos dados obtidos.  Segundo o autor, "o desprezo do materialismo científico moldou o próprio conceito de observação (id., p.29). O cientista ideal suprimiria suas crenças e emoções, sua formação, seus medos e compulsões, investigando de forma sempre racional e imparcial. Observamos que isto não é um fato, pois apesar da busca de objetividade, há muito mais fatores subjetivos envolvidos na pesquisa do que às vezes se admite.
Outra característica do conhecimento científico é o ceticismo. Segundo ele, deve-se questionar todos os pressupostos ainda não questionados do conhecimento, duvidar do senso comum, examinar as aparências de forma crítica. Em geral, contudo, apesar de um ceticismo moderado poder ser considerado saudável à pesquisa, parece que a necessidade de limites para ele não é percebida. É comum o ceticismo beirar as raias do absurdo e, contudo, recusar-se a desenvolver uma atitude cética perante seu próprio exercício.
Ressalte-se ainda que, apesar da ciência moderna ter nascido de um anseio pelo conhecimento absolutamente certo da Natureza, atualmente as verdades científicas são consideradas provisórias e mutáveis. É preciso contudo destacar que a ciência é comumente encarada como um corpo único e coerente de conhecimentos, o que está muito longe de ser um fato. Wallace (2000) observa que a verdade em ciência, hoje em dia, é determinada pela adequação empírica e pelo sucesso de suas predições. Isso faz com que existam muitos métodos, muitas teorias correntes incompatíveis entre si, que produziram afirmações empiricamente adequadas e são capazes de predizer eventos, apesar de sua incompatibilidade. (Incompatibilidade, no sentido de que, entre a teoria A e a teoria B, somente uma delas, pode ser verdadeira, e que jamais A e B seriam simultaneamente verdadeiras. Mas ambas são aceitas e defendidas por grupos diferentes de pesquisadores.)
Isto significa que a ciência também não detém respostas cabais, e que embora se constitua num corpo de conhecimento respeitável, não é suficiente para resolver o problema do ser humano perante si mesmo e perante o sentido de sua vida, que continua relevante. Este problema já era identificado pelo físico contemporâneo Max Planck em 1932, quando escreveu  Para onde vai a ciência?, onde observa que, para a ciência moderna, a solução de um mistério leva à descoberta de outro e afirma que "a ciência não pode resolver o mistério último da Natureza. E isso porque, em última análise, nós mesmos somos parte da Natureza e, portanto, parte do mistério que estamos tentando resolver" (Planck, 1941[1932], p.238).
Ou seja, entender a Natureza não será possível se não entendermos a nós mesmos, em toda a nossa complexidade, e não apenas como unidades biológicas, conjuntos de processos químicos ou componentes de sociedades.
Se a ciência tem seus limites, porém, a racionalidade ocidental não precisa confinar-se a eles. "Tipos não científicos de observação também revelam fenômenos" (Wallace, 2000, p.29). E isto fica nítido se nos livramos do fundamentalismo cientificista e do ceticismo extremado, que oferece para os fenômenos subjetivos e espirituais pretensas explicações pífias, incongruentes e insatisfatórias, e aceitamos olhar para o quadro mais abrangente, onde estes fenômenos podem se inserir coerentemente, ainda que os instrumentos em laboratórios  não possam detectá-los ou mensurá-los.
Afinal, a questão sobre nosso lugar e nossa função no Universo atravessa os milênios. E parece ser nossa tarefa esclarecê-la.

Referências:

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2a. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
JAMBET, Christian. A lógica dos orientais. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
PLANCK, Max. A dónde va la ciencia? Buenos Aires: Losada, 1941.
WALLACE, B. Allan. The taboo of subjectivity: toward a new science of consciousness. Nova York: Oxford, 2000.

Frases
NASA/Wikipedia

"A mais bela experiência que podemos ter é a do mistério. Ele é a emoção fundamental que se acha no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência." (Albert Einstein)

"Quem possui a ciência e a arte
possui também a religião:
Quem não possui nenhuma delas
melhor faria em ter a religião."
(Goethe)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O sagrado e o profano

Por Aymará (Esp.) / Rita Foelker
Texto inédito



O sagrado

A ideia do sagrado não é uma invenção humana, ela é uma necessidade espiritual nascida do reconhecimento do grande elo que une todas as coisas e todos os seres. Este elo não veio da mente de um homem, mas ele antecedeu a origem humana, já nos reinos inferiores da Criação.

Hoje é comum querer decretar que objetos e espaços são sagrados. Eu posso ver a marca do pé de um homem que considero santo e dizer que o barro daquela pegada é sagrado e ungir minha testa com ele. Mas este ato não modifica o barro, ele apenas estabelece para mim mesmo uma relação de tipo especial com aquele barro e o seu significado. É assim que, de certo modo, uma aliança de matrimônio pode se tornar sagrada para alguém, ou uma lápide, ou uma árvore...

Este é um tipo de sentido que se atribui a objetos, semelhante à sacralidade do elo que une todas as coisas, mas é mais restrito e liga aquele objeto apenas ao seu sentido para mim. E se é sincero este vínculo, devo vivenciá-lo com todo meu coração, mas sem esperar que assim seja pra outras pessoas, visto que cada ser deve ser livre na sua ligação sagrada e profunda com todas as coisas e todos os seres.

É um problema quando alguém pretende impor a outrem significados para coisas que afirma serem sagradas. Como quando tentaram dizer aos nativos americanos que a Bíblia era sagrada, que o nome de Jesus ou a hóstia eram sagrados. Porque a ideia do sagrado distorcida pela vaidade do ego e pela cegueira do orgulho serviu e ainda serve para controlar pessoas que necessitam de um encontro com o sagrado, mas ainda não sabem realmente onde ele está, embora intuam que ele existe.

A sensação de que existe algo perene por detrás das mudanças, de que o fluxo dos fatos e dos bens e das notícias não representa o todo de nossas vidas, de que há algo a ser descoberto e que atende pelo nome de “eternidade” não nos persegue, porque ela não é exterior: ela nos empurra de dentro de nossa própria alma ao reconhecimento, à gratidão e ao desvendamento das realidades superiores onde nossas vidas e nosso progresso são sustentados. E esta é a essência de todas as nossas buscas espirituais.

O profano

A ideia do profano é uma invenção humana. Ela é uma construção mental nascida da ideia da separação entre todas as coisas e seus significados. As construções puramente mentais existem num certo sentido, elas não foram inventadas pelos relativistas. Elas existem no espaço do texto e do pensamento. Mas as construções mentais são apenas uma parcela do conhecimento humano.

Hoje é comum olhar todos os objetos e espaços como profanos, como se sua razão de ser se esgotasse num processo casuístico ou numa finalidade reconhecida como meramente utilitária ou hedonista. Eu posso contemplar uma macieira apenas pelo ponto de vista da sua capacidade de produzir maçãs para nutrição do meu corpo e deleite do paladar, e entender que todo seu valor se resume à sua viabilidade econômica. Posso esquecer que ela é uma manifestação da vida que se reparte entre todos os seres e coloca todos os seres em codependência uns dos outros.

Eu posso cortar, decepar, triturar a realidade com a minha razão. E eis porque a filosofia e alguns campos da cultura, como a literatura, ao falar de macieiras ou de flores ou de céus, deparam-se com o vazio de sentido. Apreciam as culturas e os esforços humanos com um senso de inutilidade e monotonia, porque parece que os seres humanos estão sempre lutando para construir um mundo que afinal não quer dizer nada... e onde tudo acaba por perecer... E se assim parece, é porque tudo foi separado em partes que não parecem representar algo, se não as olhamos sobre o pano de fundo do todo.

É um problema quando se tenta convencer pessoas de que nada tem sentido e que tudo é profano – o que vale dizer que pode ser profanado por nossas intenções mais nefastas e nossos impulsos mais baixos. Problema, pois a ideia do profano ainda serve para mudar o foco da necessidade espiritual do reconhecimento e vivência da dimensão sagrada, sacralizando bobagens, elegendo ídolos, escravizando a própria mente e emoção ou instituindo o culto a si mesmo, à própria vaidade e interesses.

Mas a sensação de que existe algo perene por detrás da mutabilidade e inconstância persiste em nós. Não conseguimos nos livrar dela, porque ela já está no ser espiritual como semente a ser desenvolvida, não pode ser arrancada... E, nem mesmo, ignorada para sempre.