O sagrado
A ideia do sagrado não é
uma invenção humana, ela é uma necessidade espiritual nascida do reconhecimento
do grande elo que une todas as coisas e todos os seres. Este elo não veio da
mente de um homem, mas ele antecedeu a origem humana, já nos reinos inferiores
da Criação.
Hoje é comum querer
decretar que objetos e espaços são sagrados. Eu posso ver a marca do pé de um
homem que considero santo e dizer que o barro daquela pegada é sagrado e ungir
minha testa com ele. Mas este ato não modifica o barro, ele apenas estabelece
para mim mesmo uma relação de tipo especial com aquele barro e o seu
significado. É assim que, de certo modo, uma aliança de matrimônio pode se
tornar sagrada para alguém, ou uma lápide, ou uma árvore...
Este é um tipo de sentido
que se atribui a objetos, semelhante à sacralidade do elo que une todas as
coisas, mas é mais restrito e liga aquele objeto apenas ao seu sentido para mim.
E se é sincero este vínculo, devo vivenciá-lo com todo meu coração, mas sem
esperar que assim seja pra outras pessoas, visto que cada ser deve ser livre na
sua ligação sagrada e profunda com todas as coisas e todos os seres.
É um problema quando
alguém pretende impor a outrem significados para coisas que afirma serem
sagradas. Como quando tentaram dizer aos nativos americanos que a Bíblia era
sagrada, que o nome de Jesus ou a hóstia eram sagrados. Porque a ideia do
sagrado distorcida pela vaidade do ego e pela cegueira do orgulho serviu e
ainda serve para controlar pessoas que necessitam de um encontro com o sagrado,
mas ainda não sabem realmente onde ele está, embora intuam que ele existe.
A sensação de que existe
algo perene por detrás das mudanças, de que o fluxo dos fatos e dos bens e das
notícias não representa o todo de nossas vidas, de que há algo a ser descoberto
e que atende pelo nome de “eternidade” não nos persegue, porque ela não é
exterior: ela nos empurra de dentro de nossa própria alma ao reconhecimento, à
gratidão e ao desvendamento das realidades superiores onde nossas vidas e nosso
progresso são sustentados. E esta é a essência de todas as nossas buscas
espirituais.
O profano
A ideia do profano é uma
invenção humana. Ela é uma construção mental nascida da ideia da separação
entre todas as coisas e seus significados. As construções puramente mentais
existem num certo sentido, elas não foram inventadas pelos relativistas. Elas
existem no espaço do texto e do pensamento. Mas as construções mentais são
apenas uma parcela do conhecimento humano.
Hoje é comum olhar todos
os objetos e espaços como profanos, como se sua razão de ser se esgotasse num
processo casuístico ou numa finalidade reconhecida como meramente utilitária ou
hedonista. Eu posso contemplar uma macieira apenas pelo ponto de vista da sua
capacidade de produzir maçãs para nutrição do meu corpo e deleite do paladar, e
entender que todo seu valor se resume à sua viabilidade econômica. Posso
esquecer que ela é uma manifestação da vida que se reparte entre todos os seres
e coloca todos os seres em codependência uns dos outros.
Eu posso cortar, decepar,
triturar a realidade com a minha razão. E eis porque a filosofia e alguns
campos da cultura, como a literatura, ao falar de macieiras ou de flores ou de
céus, deparam-se com o vazio de sentido. Apreciam as culturas e os esforços
humanos com um senso de inutilidade e monotonia, porque parece que os seres
humanos estão sempre lutando para construir um mundo que afinal não quer dizer
nada... e onde tudo acaba por perecer... E se assim parece, é porque tudo foi separado em partes que
não parecem representar algo, se não as olhamos sobre o pano de fundo do todo.
É um problema quando se
tenta convencer pessoas de que nada tem sentido e que tudo é profano – o que
vale dizer que pode ser profanado por nossas intenções mais nefastas e nossos
impulsos mais baixos. Problema, pois a ideia do profano ainda serve para mudar
o foco da necessidade espiritual do reconhecimento e vivência da dimensão
sagrada, sacralizando bobagens, elegendo ídolos, escravizando a própria mente e
emoção ou instituindo o culto a si mesmo, à própria vaidade e interesses.
Mas a sensação de que
existe algo perene por detrás da mutabilidade e inconstância persiste em nós. Não conseguimos nos
livrar dela, porque ela já está no ser espiritual como semente a ser desenvolvida,
não pode ser arrancada... E, nem mesmo, ignorada para sempre.
Lindo texto Rita. Sabe, há tempos tenho me deparado com essa sensação de que se escolho um objeto e sobre ele derramo toda minha fé, de que importa o objeto, se, no fundo, o que importa é como ele é capaz de me transformar e como me ligo a ele? O objeto é apenas um pretexto para a transformação que se processa em mim... Beijo e parabéns pela excelente reflexão
ResponderExcluirObrigada, mas não são palavras e ideias minhas. São de Aymará, um Espírito que recentemente comecei a psicografar. Ainda estamos nos ajustando. Eu creio que este movimento de fixar-se no objeto em vez de penetrar no seu sentido mais profundo ainda é muito característico do ser humano. Isso me lembra um pouco o "obstáculo substancialista" de Bachelard - rs - a insistência de associar propriedades a determinadas substâncias químicas, como se a substância fosse a razão única de todas as suas qualidades, quando elas de fato derivam de relações entre substâncias. Enfim, nada pode ser visto fora das relações em que está inserido, ou será visto pessimamente... Obrigada pelo comentário, beijo.
ResponderExcluirSerá que o ser humano um dia terá essa visão global da realidade?
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