quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Problemas existem, mesmo? *

Por Rita Foelker


Certa vez eu escrevi que a gente filosofa sobre aquilo que não consegue resolver. Quanto mais conheço coisas da filosofia, mais me convenço disso. 

Pode então parecer apropriado – e até mesmo, engraçado – que eu ande pensando justamente sobre os problemas. 

Não, não quis dizer que tenho pensado nos “meus” eventuais problemas. É mais num sentido geral, pensado em problemas como um tópico que afeta a vida humana. Sem a pretensão de resolvê-los. 

Também não pretendo complicar nada, lembrando de Bertrand Russell que escreveu: “O propósito da filosofia é começar por algo tão simples que nem parece valer a pena e terminar com algo tão complexo que ninguém entende.” Isso tornaria meu exercício um verdadeiro desperdício, do ponto de vista prático... 


O caminho 


Tudo começou com um post no Facebook, uma frase atribuída a Wayne Dyer (psicoterapeuta e escritor de livros de autoajuda): “Los problemas son nuestra resistencia a ir a la Fuente.” 

Há, nos meios intelectuais, quem olhe torto para autores de autoajuda. Isso pra mim soa como puro preconceito. Isto posto, então, os problemas segundo Dyer são nossa resistência a ir à Fonte – com “f” maiúsculo. O sentido não me pareceu óbvio, a princípio, e nem tinha o contexto da frase para me ajudar. Mas era um bom ponto de partida para expor o que eu ando pensando ultimamente. Então eu compartilhei e acrescentei: “Taí, eu sempre me perguntei se os problemas tinham existência objetiva, se eram "reais", ou se eram nossas maneiras de ver as coisas... Talvez um dia eu chegue a alguma conclusão... Não tô com pressa - rs.” (Escrevo assim mesmo no Face.) 

Mais adiante, já tendo refletido um pouco mais, escrevi num comentário que “algumas situações da vida pedem respostas de nossa parte. Mas se serão problemáticas ou não... talvez isso dependa mesmo de nós”. 

O ponto que preciso destacar é o seguinte: há coisas nessa vida que acontecem de modo a pedir nossa atenção. Muitas delas chegam com certas características, a ponto de pedirem nossa opinião e/ou nossa ação. É como se fossem estímulos ao exercício de nossas capacidades intelecto-morais, ou meios de avaliação que podemos usar para perceber como estamos no campo das atitudes. Não quero dizer com isso que nos estejam colocando à prova ou testando, pois penso sermos nós próprios que fazemos essa checagem e aproveitamos a oportunidade para reafirmar aquilo que consideramos positivo e mudar o que consideramos negativo. 

Isso, contudo, não precisa ser feito num estado emocional perturbador como irritação, desespero ou apreensão. As situações não precisam automaticamente disparar essas emoções incômodas em nós. Só farão isso se não percebemos que há maneiras diferentes de lidar com elas, sem termos de chamá-las de problemas. 

Quando chamamos uma ocorrência ou situação de 'problema', é como se nos apropriássemos dela e ela passasse a fazer parte de nós, como se fosse “nossa”. E, sendo nossa, nos ocupa... Ao que parece, assumimos a obrigação de nos incomodarmos com um problema que consideramos “nosso”, nós o agarramos e carregamos conosco. 

Algum tempo depois, li, noutro post, um trecho de Khalil Gibran que diz o seguinte: “Seu viver é determinado não tanto pelo que a vida traz para você, como pela atitude com que você leva a vida, não tanto pelo que acontece com você como pela forma como a sua mente olha para o que acontece.” 

E possivelmente não por coincidência, ainda na rede social, li um trecho de Eckhart Tolle (escritor alemão sobre temas da espiritualidade, autor de O poder do agora), onde a ideia também se confirmava: “O problema não são as contas de amanhã. A morte do corpo físico não é um problema. A perda do Agora é que é o problema, ou antes, a ilusão central que transforma uma mera situação, um simples acontecimento ou uma emoção, num problema pessoal e num sofrimento.” 

Continuei refletindo e verificando que um problema tende realmente a vir acompanhado de algum tipo de sofrimento. Mas que não é obrigatório que soframos com as situações, pois podemos responder com outras emoções e outras atitudes ao mesmo estímulo, e que o modo de reagir é livremente escolhido por nós. Contudo, o que determina que teremos essa opção? O maior conhecimento de quem somos e do que estamos fazendo nesse mundo, onde todas as situações visam, em última instância, nosso aprendizado e melhoria espiritual. Isso significa acessar a Fonte da vida ou ignorá-la... Bingo! O círculo se fecha no primeiro de todos os posts. 

E – veja só! – Eckhart Tolle chega a afirmar que nosso nível de consciência se reflete na maneira como lidamos com tais situações, quando escreve: “O melhor indicador do seu nível de consciência é a maneira como lida com os desafios da vida quando eles surgem.” 

A tudo isso, só falta acrescentar a fala de Calunga em Vamos ficar bem (Ed. Gil), quando diz que a gente pega as situações desagradáveis, traz pra gente e “fica cozinhando”. São pensamentos grudentos, segundo o amigo espiritual, e nós somos “grudáveis”, sendo que a única maneira de evitar que isso ocorra é cuidando dos pensamentos... 

Na prática, portanto, aquilo que Dyer, Gibran, Tolle e Calunga dizem confluem para uma mesma conclusão: Se você quer ter problema... o problema é seu! Mas você tem escolha...


_____
*Texto publicado originalmente no site da Fundação Espírita André Luiz, no mês de setembro de 2012.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Meu credo

Por Rita Foelker

Não quero mais dizer o que sou – cristã, "pagã", espírita, simpatizante do que quer que seja... Não quero me fixar em denominações religiosas ou doutrinárias que, para me definir, apartam as pessoas e fazem com que se olhem de maneira diferente. Com que se sintam estranhas ou me olhem estranhamente.

Sou uma estudiosa do espiritismo, cujas bases filosóficas formam meu entendimento da vida. Estudei um tanto e estou tão convencida da lógica e acerto dessa visão, que às vezes escrevo e faço palestras. Mas não me classifique, porque eu não quero participar de mais uma divisão inventada pelos seres humanos.

Tem algumas coisas em que acredito plenamente, dentro de mim, que formam a minha fé a respeito da vida.

Eu acredito na bondade humana como essência comum a todos os seres, como semente a ser desenvolvida. Acredito em ser feliz e também no provérbio africano que diz que é preferível ser feliz a ser rei... e penso que é melhor ser livre do que chegar em primeiro lugar.

Como Lya Luft, estou certa de que “se cada um cultivar afeto, beleza e lealdade em seu ambiente, por pequeno que seja, isso há de espalhar claridade no mundo”. Levo isso a sério.

Como Luther King, não penso que seja preciso visualizar a escada inteira pra escolher subir o primeiro degrau. Basta sentir que se está mesmo subindo...

Em nome do que acredito, procuro ser coerente naquilo que digo e faço. Sei que falho algumas vezes, mas não desisto, porque também sei que um dia vou ser melhor do que sou hoje. Todos vamos ser.



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A razão e suas armadilhas


Compreender os limites para confiar nas possibilidades do raciocínio humano

Por Rita Foelker*

Quando se fala em espiritismo, é comum que os estudiosos de sua filosofia logo pensem em fé raciocinada. No entanto, Kardec e os espíritos não se cansam de afirmar que a razão pode falhar. Pode parecer uma inconsistência: se necessito de uma base sólida para a fé e a razão é falível, como poderei confiar nela?
Por outro lado, a importância de se poder basear a fé na razão é crucial no espiritismo e dá maior sentido ao tripé ciência/filosofia/moral, associando o conhecimento ao modo de pensar, dessa associação decorrendo nossas maneiras de agir.
Entender a função que Kardec e os espíritos atribuíram à razão e o melhor modo de evitar suas armadilhas é o que se pretende nesse artigo. Para isso, buscaremos suporte em algumas teses de um dos mais respeitados pensadores do século XX a abordar o conhecimento, o austríaco Karl Popper (1902-1994).

Armadilhas da razão

Para admitirmos a existência de Deus, para aceitarmos a necessidade da reencarnação, os espíritos da Codificação e o próprio Kardec solicitam que utilizemos a razão. À questão 4 de O livro dos espíritos, sobre onde se pode encontrar a prova da existência de Deus, respondem os espíritos:  “Num axioma que aplicais às vossas ciências. Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá.” Sobre o princípio da reencarnação, diz o mestre lionês: “tê-la-íamos repelido, mesmo que provindo dos espíritos, se nos parecera contrária à razão” (LE – item 222). Ao tratar dos atributos de Deus, a razão é novamente mencionada. São todos pontos fundamentais da filosofia espírita.
No entanto, já na “Introdução” ao mesmo livro, lemos que “o homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro”.
Pouco adiante, contudo, Kardec oferece uma ideia mais precisa do que considera um ponto frágil da razão humana: “O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus.” Então, parece que o problema não está na razão, porém, no orgulho, o que vai se confirmar na resposta que os espíritos deram à questão 75a d’O livro dos espíritos: “Por que nem sempre é guia infalível a razão? Seria infalível, se não fosse falseada pela má educação, pelo orgulho e pelo egoísmo”.
Como não se pode ter absoluta certeza de que a razão não será capturada em pelo menos uma dessas três armadilhas, mas precisamos confiar no poder da razão, talvez possamos considerá-la como um instrumento de avaliação de conhecimentos, mas não uma fonte absoluta deles... Essa é uma consequência da teoria de Karl Popper, filósofo austríaco, relacionada à validade do conhecimento e ao uso da razão.

Conhecimento e autoridade

Ao ouvir uma afirmação nova ou surpreendente, é comum perguntar-se “como você sabe disso?”, buscando identificar a fonte ou origem do conhecimento. Questionar a fonte do conhecimento, porém, leva a um beco sem saída. A maioria das coisas que cremos saber não nos veio por experiência direta, mas de tradições, de leituras e relatos, cuja fonte não nos será acessível.
Quando pensamos, por exemplo, nas tábuas dos Dez Mandamentos que, segundo a Bíblia, Moisés entregou ao povo hebreu, a primeira imagem que mais comumente nos ocorre é a de duas placas grandes, com a parte superior convexa. De fato, vimos muitas figuras religiosas e artísticas retratando esse momento. Mas não temos como saber se elas de fato existiram, se tinham esse formato ou se eram aquelas pequenas tabuinhas que os sumérios preenchiam de escrita cuneiforme, se elas eram retangulares, ou irregulares. E, apesar disso, estamos prontos a admitir que elas eram como foram mostradas para nós durante a vida.
Sobre isso, poderíamos, talvez, buscar historiadores confiáveis, mas ainda assim estaríamos envolvidos com questões de autenticidade, de fidedignidade, o que nos enovelaria em uma rede ainda maior de questionamentos. Quando raciocinamos sobre esse tipo de relatos ou afirmações, além de não estarmos absolutamente certos quanto à sua correspondência com a realidade, podemos também cometer equívocos por desatenção, por preconceitos ou outros motivos, além da má educação, orgulho e egoísmo citados pelos espíritos.
Boa parte daquilo que assumimos saber e sobre que raciocinamos vem também dos livros. Mas livros apenas relatam fatos, propõem raciocínios, expõem argumentos, além de terem sido escritos por pessoas que têm seu próprio entendimento, opiniões e intenções, pessoas sujeitas à sua própria cultura e educação.
Percebe-se, assim, que a possibilidade de um conhecimento autenticado pela sua fonte é remota, o que leva a um expediente a que muitos recorrem: o uso da autoridade. Alguns autores teriam mais autoridade para fazer certas afirmações que outros. Algumas fontes teriam mais peso que outras, na defesa de uma tese. O princípio de autoridade é antigo na história e era muito usado na filosofia escolástica, em disputas filosófico-teológicas em que os argumentos eram válidos poderiam apenas por serem atribuídos aos antigos, como Platão e Aristóteles, aos padres da igreja, aos papas e os santos.
Podemos, sem dúvida, dizer que algumas fontes são mais confiáveis que outras. Mas estabelecer uma confiabilidade absoluta baseada no nome de um autor ou livro é temerário e pode levar a extremos de fanatismo e irracionalidade, seja ele encarnado, médium ou espírito.
Karl Popper tem uma proposta de solução para o problema. Ele entende que as questões da origem e da validade de um conhecimento são distintas e assim precisam ser consideradas. Segundo ele, teorias do conhecimento tradicionais tendem a não contestar a legitimidade de afirmações diversas, apenas pela citação de suas fontes, como se o conhecimento pudesse “legitimar-se por sua linhagem”. A aceitação da autoridade como motivo principal para crermos numa afirmação, porém, levada ao extremo, desconsidera as aberrações cognitivas e até as morais, porque a autoridade pode legitimar qualquer proposição.
Considerando que não existe fonte pura de conhecimento, e que equívocos e erros sempre podem ocorrer, Popper entende que nossa melhor chance está em encontrar meios de identificar e gradativamente eliminar possíveis erros. E é aqui que surge a necessidade do uso da razão.
Parece-nos, portanto, muito importante compreender que nossa razão tem seus limites, conforme nos recorda Platão em comentário à questão 1009 de O livro dos espíritos, não obstante afirmar ser ela, como a temos, uma dádiva de Deus.
Diante da limitação e da falibilidade da razão, contudo, o que se pode fazer?

A solução dos gregos

Popper nos apresenta uma solução para o problema encontrada pelos gregos, que se encontra nos primórdios da filosofia ocidental: o debate crítico. Ele observa que quase todas as civilizações criavam escolas para transmitir ensinamentos cosmológicos e religiosos, locais que tinham como grande objetivo preservar uma doutrina e uma tradição. Em locais como esses, as mudanças, ou não existem, ou são apresentadas como reafirmações dos conceitos do mestre. É um clima propício para o surgimento de cismas (dissidências) e heresias (doutrinas, ideias ou práticas que se opõem ao que é estabelecido). E sabemos aonde as acusações de heresia conduziram muitas das vozes discordantes da interpretação da igreja católica, num passado fartamente documentado.
Na Grécia, a escola pitagórica tinha uma estrutura semelhante às de ordens religiosas fechadas, com estilo de vida e conhecimentos secreto. Fora desse ambiente, contudo, observa-se um fluxo constante de ideias, mestres debatendo com alunos, como é o caso das discordâncias entre Tales (o mestre) e Anaximandro (o discípulo) onde, segundo Popper sugere, “Tales teria encorajado ativamente a crítica dos discípulos”, fundando assim “uma nova relação de liberdade, baseada em uma nova relação entre mestre e discípulo”.
Tal atitude vem de uma percepção de que “nossas tentativas de ver e descobrir a verdade não são definitivas, mas passíveis de aprimoramento” e de que “a crítica e o debate são os únicos meios de chegar mais perto da verdade”.
O caráter progressivo do espiritismo é uma das suas características destacadas por Kardec em vários pontos da Codificação, como neste de Obras póstumas: “Fundado de acordo com o estado presente dos conhecimentos, tem ele que se modificar e completar à medida que novas observações lhe demonstrarem as deficiências ou os defeitos.” Considerando, tal qual Popper, o estado dos conhecimentos humanos como provisório, o Codificador prevê necessidade de revisões e mudanças, mas adverte que “as modificações não lhe devem ser introduzidas levianamente, nem com precipitação. Hão de ser obra dos congressos orgânicos que, à revisão periódica dos estatutos constitutivos, acrescentará a do formulário dos princípios”. Congressos pressupõem reunião de pessoas e troca de ideias, em uma palavra: debate crítico.
Em A gênese, somos lembrados de que “os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente pronta, nenhuma ciência”. Convém não nos esquecermos disso.

Limites da inteligência humana

Os espíritos dizem a Kardec, respondendo à questão 83 de O livro dos espíritos: “Há muitas coisas que não compreendeis, porque tendes limitada a inteligência. Isso, porém, não é razão para que as repilais. O filho não compreende tudo o que a seu pai é compreensível, nem o ignorante tudo o que o sábio apreende.” A apreensão da verdade é, portanto, gradativa, segundo a evolução de cada criatura. (R.F.)

Para saber mais:
A gênese, de Allan Kardec.
Textos escolhidos, de Karl Popper. Org. David Miller. Ed. Contraponto/PUC-Rio
_____
* Matéria em destaque publicada no jornal Leitura Espírita nº 7, de Outubro de 2012.